José Serra escreveu no Estadão de ontem
um excelente artigo sobre a decadência do petismo e sua guinada autoritária —
dentro do autoritarismo que já está na sua origem. Explica a razão do
desarvoramento do partido e aponta como evidências do destrambelhamento o
decreto bolivariano da presidente Dilma e a lista negra de jornalistas. Leiam o
texto abaixo:
O PT fora do Eixo
O PT não é um partido muito
tolerante já a partir de seus próprios pressupostos originais e de seu nome:
quem se pretende um partido “dos” trabalhadores, não “de” trabalhadores, já
ambiciona de saída a condição de monopolista de um setor da sociedade. Mais
ainda: reivindica o poder de determinar quem pertence, ou não, a essa categoria
em particular. Assim, um operário que não vota no PT, por exemplo, não estará,
pois, entre “os” trabalhadores; do mesmo modo, o partido tem conferido a
“carteirinha” de operário padrão a pessoas que jamais ganharam o sustento com o
fruto do próprio trabalho.
A fórmula petista é conhecida:
a máquina partidária suja ou lava reputações a depender de suas necessidades
objetivas. Os chamados bandidos de ontem podem ser convertidos à condição de
heróis e um herói do passado pode passar a ser tratado como bandido. A única
condição para ganhar a bênção é estabelecer com o ente partidário uma relação
de subordinação. A partir daí não há limites. Foi assim que o PT promoveu o
casamento perverso do patrimonialismo “aggiornado”, traduzido pela elite
sindical, com o patrimonialismo tradicional, de velha extração.
Afirmei no final de 2003 o que
nem todos compreenderam bem, que o petismo era o “bolchevismo sem utopia”.
Aproxima-se do bolchevismo nos métodos, no propósito de tentar se estabelecer,
se possível, como partido único; nas instâncias decisórias aproxima-se do
chamado “centralismo democrático”, que nada mais é do que a ditadura da direção
central do partido. É bolchevista também na certeza de que determinadas ações
até podem ser ruins para o Brasil, mas serão implementadas se parecerem boas
para o partido. Como se considera que é ele que conduz a História do Brasil,
não contrário, tem-se por certo que o que é bom para o partido será, no longo
prazo, bom para o País e para o povo. Nesse sentido particular os petistas
ainda são bastante leninistas.
Quando afirmei que lhes faltava
a dimensão utópica, não estava emprestando um valor necessariamente positivo a
essa utopia. Na minha ação política miro a terra que há, não a Terra do Nunca.
E nela procuro sempre ampliar aquilo que é percebido como os limites do
possível. De todo modo, é inegável que o bolchevismo tinha um devir, uma
prefiguração, um sonho de um outro amanhã, ainda que isso tenha desembocado na
tragédia e no horror stalinista. Mas isso não muda a crença genuína de muitos
que se entregaram àquela luta. Isso o PT não tem. E chega a ser piada afirmar
que o partido, de alguma maneira e em alguma dimensão, no que concerne à
economia é socialista ou mesmo de esquerda. Muitas correntes de esquerda são
autoritárias, mas convém não confundir o autoritarismo petista com socialismo.
O socialismo tem sido só a fachada que o PT utiliza para lavar o seu
autoritarismo – associado, infelizmente, a uma grande inépcia para governar, de
que tenho tratado sempre nesta página.
Quero chamar a atenção é para o
recrudescimento da face intolerante do partido. Como também já abordei aqui,
vivemos o fim de um ciclo, que faz cruzar, episodicamente, a História do Brasil
e a do PT. As circunstâncias que permitiram ao petismo sustentar o modelo que
aí está – que nunca foi “de desenvolvimento”, mas de administração oportunista
de fatores que não eram de sua escolha – se esgotaram. Na, infelizmente, longa
agonia desse fim de ciclo temos a economia semiestagnada, os baixos
investimentos e a desindustrialização, os déficits do balanço de pagamentos em
alta e a inflação reprimida. E, nota-se, o partido nada tem a oferecer a não
ser a pregação terrorista de que qualquer mudança implicará desgraça nacional.
Não tendo mais auroras a
oferecer, não sabendo por que governa nem por que pretende governar o País por
mais quatro anos, e percebendo que amplos setores da sociedade desconfiam dessa
eterna e falsa luta do “nós” contra “eles”, o petismo começa a adentrar
terrenos perigosos. Se a prática não chega a ameaçar a democracia – tomara que
não! –, é certo que gera turbulências na trajetória do País. No apagar das
luzes deste mandato, a presidente Dilma Rousseff decide regulamentar, por
decreto – quando poderia fazê-lo por projeto de lei –, os “conselhos
populares”. Não por acaso, bane o Congresso do debate, verticalizando essa
participação, num claro mecanismo de substituição da democracia representativa
pela democracia direta. Na Constituição elas são complementares, não
excludentes. Por incrível que pareça – mas sempre afinado com o bolchevismo sem
utopia –, o modelo previsto no Decreto 8.243 procura substituir a democracia
dos milhões pela democracia dos poucos milhares – quase sempre atrelados ao
partido. É como se o PT pretendesse tomar o lugar da sociedade.
Ainda mais detestável: o
partido não se inibe de criar uma lista negra de jornalistas – na primeira
fornada estão Arnaldo Jabor, Augusto Nunes, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi,
Guilherme Fiuza, Danilo Gentili, Marcelo Madureira, Demétrio Magnoli e Lobão –,
satanizando-os e, evidentemente, expondo-os a riscos. É desnecessário dizer que
tenho diferenças, às vezes severas, com vários deles. Isso é parte do jogo. É
evidente que o regime democrático não comporta listas negras, sejam feitas pelo
Estado, por partidos ou por entidades. Mormente porque, por mais que se possa
discordar do ponto de vista de cada um, em que momento eles ameaçaram a
democracia? Igualmente falsa – porque há evidência dos fatos – é que sejam
tucanos ou “de oposição”. Não são. Mas, e se fossem? Num país livre não se faz
esse tipo de questionamento.
Acuado pelos fatos, com receio
de perder a eleição, sem oferecer uma resposta para os graves desafios postos
no presente e inexoravelmente contratados para o futuro, o PT resolveu acionar
a tecla da intolerância para tentar resolver tudo no grito. Cumpre aos
defensores da democracia contrariar essa prática e essa perspectiva. Não foi
assim que construímos um regime de liberdades públicas no Brasil. O PT está
perdendo o eixo e tende a voltar à sua própria natureza.
(Texto de José Serra)
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