O que leva uma pessoa que ingressa na
Polícia Militar a se tornar um assassino?
A resposta para essa pergunta foi o
que motivou o tenente-coronel Adilson Paes de Souza a se tornar um estudioso do
tema da violência policial. A pesquisa desenvolvida rendeu frutos. Sua
dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da USP, aprovada com louvor no
ano passado, se transformou no livro O Guardião da
Cidade, da editora Escrituras, que ele lança nesta
segunda-feira, 11, às 18h30, na Livraria Martins Fontes, à avenida Paulista,
509.
As inquietações do coronel sobre o
assunto, no entanto, surgiram bem antes.
Há mais de uma década durante o curso
que frequentou na Academia do Barro Branco, para ascender ao posto de major,
ele teve aulas de Direitos Humanos com o desembargador Antonio Carlos
Malheiros. O contato com o mestre foi decisivo.
Malheiros levava para o diálogo com os
alunos em sala de aula, vídeos com denúncias de entidades de defesa dos direitos
humanos sobre tortura e outros tipos de violência policial.
O que causava irritação nos demais
colegas, produzia nele efeito contrário. O então capitão Adilson se sentia
desconfortável, sim, mas por outro motivo. A falta de respostas da corporação para
enfrentar essas violações é o que o incomodava.
“Via muitos oficiais negando as
denúncias pura e simplesmente, outros diziam que era uma orquestração contra a
instituição. Não via nenhuma resposta adequada aos relatórios nacionais e
internacionais que denunciavam a violência policial”, enfatiza.
Constatar se a educação em Direitos
Humanos que os oficiais recebem na Academia é adequada, e em caso negativo, se
isso gera aumento no quadro de violência, além de contribuir para que o
policial se torne assassino, foram as hipóteses levantadas para o
desenvolvimento da dissertação. Essas hipóteses se confirmariam ao longo da
pesquisa.
Segundo ele, existem vários temas de
extrema importância que não são abordados nos cursos da corporação.
“A violência policial não é tratada no
currículo de Direitos Humanos. É um tabu, não se comenta”, revela. “Por que eu
não posso levar para a sala de aula a discussão dos casos de insucesso, para
aprender com os erros? Por que não posso tocar na questão da violência policial
nos bancos escolares?”, questiona. “É um equívoco muito grande não se discutir
isso. As grandes empresas, no mundo todo, que buscam sucesso discutem seus
erros, para que não ocorram mais.”
O coronel destaca que após ter
concluído o livro houve uma reforma no currículo da PM. O curso que era de
quatro anos, foi reduzido para três. “A carga horária que já era baixa foi
reduzida ainda mais na disciplina de Direitos Humanos, mas agora consta no
currículo Violência Policial. Contudo a abordagem é para desenvolvimento de
sistemas e aprimoramento de supervisão e controle. Isso é pouco. Nós temos de
estudar os casos que deram errado, que resultaram em execução extrajudicial e
extermínio. Entender porque isso aconteceu, para que não se repita.”
O mesmo se aplica à questão da
tortura. “Quando se fala sobre tortura, se fala da lei de tortura, não sobre os
mecanismos que fazem com que a tortura exista. Não se fala sobre o que motiva
uma pessoa a reduzir outra a um objeto. Estudar esses mecanismos é de suma
importância, não é só estudar a lei.”
Educação falha
Para elaborar a dissertação que
resultou no livro, além da pesquisa teórica, o coronel ouviu vários policiais
militares que praticaram homicídios, cumpriram pena pelos crimes que cometeram
e foram expulsos da corporação.
“Nas entrevistas, eu perguntei o que
os levou a praticar os homicídios. E a resposta foi de que não conheciam a
realidade social onde foram trabalhar. ‘Não tive isso nos bancos escolares’.
Isso evidencia que houve falha no processo de formação. A minha hipótese de que
a educação em Direitos Humanos não estava cumprindo o seu papel se confirmou
logo na primeira pergunta.”
Os policiais criam por conta própria
suas respostas. “Isso é perigoso, porque depende da capacidade de cada um em
responder ao estímulo externo. Se não estou preparado, o choque pode produzir
reações adversas a ponto de a pessoa achar que pode resolver o problema
sozinho. Foi isso o que aconteceu com os policiais militares que entrevistei.
Se sentiam dotados de superpoderes. Diziam que podiam fazer o que quisessem
visando à proteção da sociedade.”
O slogan proferido por muitos
policiais: ‘Bandido bom é bandido morto’ é rechaçado de forma veemente pelo
coronel, que o classifica como um “populismo barato, com cunho
político-eleitoral espúrio e perigosíssimo”.
Ele explica que esses policiais querem
conquistar status pelo medo que impõem. Há estudos que comprovam que esse tipo
de policial se vê como um super-homem.
Outra teoria revela que a frustração e
a impotência diante de determinadas situações podem levar policiais a adotar
atitudes extremadas.
“Isso encontra eco na fala dos
ex-policiais que entrevistei. Eles disseram que não acreditavam mais no sistema
de justiça. ‘Eu não estava preparado para enfrentar a extrema carência social,
tive de desenvolver ferramentas para resolver o problema. Não acreditava no
sistema, passei a ser o sistema sem intermediários. Eu protegia a sociedade
segundo os meus critérios’. Essa era a fala deles.”
O descrédito nas instituições fica
patente no argumento utilizado como justificativa para as execuções praticadas.
“Eles disseram que cansaram de levar pessoas para a delegacia e ver os presos
pagarem propina e serem soltos. ‘Por que eu vou arriscar a minha vida
prendendo, para outra polícia soltar. Vou prender, sentenciar e matar. Assim
protejo a sociedade.’ Isso é uma total incompreensão do que vem a ser a função
policial. Nós representamos um Estado, não somos o Estado, e no caso um Estado
ditatorial”, ressalta.
A Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) determina que professores em instituições de nível superior
tenham curso de pós-graduação com mestrado e doutorado.
“Mas dos seis docentes da disciplina
de Direitos Humanos (da Academia), na época em que fiz a pesquisa, quatro eram
policiais militares e nenhum deles tinha pós-graduação. Dos dois civis, um
tinha lato sensu e outro estava cursando doutorado. A LDB não é cumprida. Há um
artigo na Lei, o 83, que diz que o ensino militar se regerá por leis próprias.
A Polícia Militar adotou o artigo literalmente. Para um PM ser docente, o único
requisito exigido é ele ter cursado a disciplina de Direitos Humanos.”
O coronel defende a tese de que as
disciplinas lecionadas na Academia, semelhantes às desenvolvidas nas
universidades públicas ou privadas devem seguir as mesmas regras e, portanto,
exigir que os professores tenham pós-graduação. Ele também questiona a
interpretação do termo militar pela corporação. “Policial militar é militar? A
Constituição Federal diz que não é. O artigo 83 deveria ser interpretado, levando-se
em conta a Constituição e não uma interpretação gramatical.” E completa: “Um
doutor em ciência política, docente da FGV, usou um termo que eu acho bem
adequado, que afirma que isso é um dos vários entulhos que ainda existem na
legislação. Isso é um resquício da ditadura militar.”
Desmilitarização
Para o coronel Adilson, passou da hora
de se discutir a desmilitarização da corporação com seriedade. “A Ouvidoria das
polícias com base em dados da Secretaria de Segurança Pública e do FBI
constatou que a Polícia Militar de São Paulo matou em cinco anos mais do que
todas as forças policiais norte-americanas. Então tem de ter mudança. Não é uma
questão político-partidária, é uma questão de política de Estado, de
sobrevivência do Estado democrático de direito. Do jeito que está não dá mais.
Estamos assistindo a uma espiral de violência, que tem de parar.”
Ele cita a pesquisa apresentada
recentemente pelo Fórum Nacional de Segurança Pública que aponta que 70,1% da
população desconfiam das polícias, para exemplificar como a violência praticada
por agentes de Estado impacta na opinião pública. De acordo com o coronel, nos
Estados Unidos 88% da população confiam na polícia, no Reino Unido esse
percentual fica na casa dos 82%.
“Lá, as polícias são de cunho civil,
embora usem uniformes e tenham uma estética militar. Nos Estados Unidos, mesmo
após os atos patrióticos que instalaram um Estado de exceção no país, a
população confia nas polícias. Seria bom estudar isso e aprender com eles. O
programa segurança cidadã da Colômbia é um bom exemplo. Deixou de lado a
doutrina da segurança nacional, de combate ao inimigo. Perceberam que isso não
era efetivo, que não estava resolvendo. Partiram para um novo conceito de
segurança cidadã. As questões de segurança pública não podem ser tratadas
somente sob a ótica da repressão.”
O coronel acredita que ações violentas
por parte da Polícia Militar, como a desocupação do Pinheirinho, em São José
dos Campos, interior de São Paulo, e a repressão às manifestações de rua em
junho passado, contribuíram para o desgaste da corporação junto à população.
“Por um pedaço de terra, não valia a
pena produzir tanta desgraça na vida daquelas pessoas. Podia se esperar mais um
ou dois meses até se chegar a uma solução adequada. Podia ter sido de outra maneira.
Nada justifica o que aconteceu. Não estou denegrindo a minha Polícia Militar.
Eu sou leal, adoro a Polícia Militar, mas não tem justificativa. O Pinheirinho
foi uma mancha na história da minha corporação. Eu acho que tem de ser um marco
que represente uma mudança de atitude.”
Em relação à repressão contra
manifestantes, o coronel também é contundente.
“Infelizmente determinados efetivos da
Polícia Militar, em alguns episódios, não sabem lidar com o diferente, com o
contraditório. Fazem como primeira e única opção o uso da violência. Não da
força, mas da violência. Opção errada, que evidencia o despreparo. Após esse
dia (13 de junho), um repórter me disse que a polícia conseguiu unir todo mundo
contra (ela). Criminalizar os movimentos sociais e reprimi-los não vai
solucionar o problema. Foi uma atuação equivocada da Polícia Militar, para
dizer o mínimo.”
O coronel elogia, no entanto, a
postura desempenhada pelo secretário de Segurança Pública, Fernando Grella, no
episódio para debelar a crise instalada. “O secretário teve uma atitude
correta, assumiu o controle das polícias. Se percebeu uma mudança na atuação
das polícias.”
Incitação à violência
Mas se atitudes como as do secretário
contribuíram para conter a violência policial naquele momento, outros componentes
vitaminam diariamente essa violência.
Os programas de jornalismo policial
exibidos em várias emissoras de TV nos finais de tarde são exemplo disso. Para
o coronel, os apresentadores desses programas prestam um desserviço à
democracia ao difundirem a ideia de que a solução do conflito deve ser por meio
da violência e de que para se ter autoridade é preciso ser arbitrário e
truculento. “Isso é perigosíssimo. Incitam a violência de uma maneira crua,
absurda. Não é à toa que determinadas camadas da população defendem a pena de
morte e falam que tem de matar (os bandidos).”
Esses programas sensacionalistas
atingem milhares de pessoas. Grande parte de sua audiência vem dos próprios
policiais que se alimentam dos estímulos emitidos por esses apresentadores. Os
noticiários servem como um salvo conduto para que eles continuem a ser
truculentos. “Eu gostaria que nós ficássemos invisíveis e entrássemos nos
quartéis para ver em que canais estão ligadas as TVs nesse horário”, brinca.
Com 30 anos de serviços prestados à
PM, a clareza nas posições e a defesa intransigente de valores ligados à vida
não amedrontam o coronel defensor dos direitos humanos.
Indagado se teme por sua própria
segurança por abordar de maneira explicita as mazelas da corporação, ele afirma
que não. “Eu teria medo se tivesse partido para o denuncismo, ofendido pessoas
ou as desmerecido. Mas isso eu nunca fiz e nunca vou fazer. O meu livro visa
tão somente expor a minha mais clara lealdade à Polícia Militar e aos meus
companheiros de farda. Sou um oficial da reserva da Polícia Militar. Não quero
que eles passem pelo que outros policiais passaram. Porque o drama é pesado, o
trauma é grande e a dor é imensa. Eu sou amigo, sou parceiro deles. Estou aqui
para ajudar. O livro é um material para permitir a reflexão, uma contribuição
para a solução desse grave problema. Minha meta é fazer doutorado, quero
continuar estudando a violência policial.”
Por Lúcia Rodrigues, especial para a Comissão de
Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
- Nosso blog tem o maior prazer em publicar seus comentários. Reserva-se, entretanto, no direito de rejeitar textos com linguagem ofensiva ou obscena, com palavras de baixo calão, com acusações sem provas, com preconceitos de qualquer ordem, que promovam a violência ou que estejam em desacordo com a legislação nacional.
- O comentário precisa ter relação com a postagem.
- Comentários anônimos ou com nomes fantasiosos poderão ser deletados.
- Os comentários são de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores e não refletem a opinião deste blog.