Passados 25 anos da nova ordem
constitucional inaugurada pela Carta de 1988, o Brasil ainda não se desincumbiu
do dever de promover adequadamente a Segurança Pública, notadamente no que
tange à relevante função de apuração das infrações penais.
O momento exige soluções concretas e
inadiáveis para um problema grave, (além
da desmilitarização da Polícia e Bombeiro Militar do Brasil) – os altos
índices de criminalidade em contraste aos baixos índices de apurações de crimes
e de condenações pelo Poder Judiciário.
A esse propósito, muito se tem discutido sobre
quem deve promover as investigações criminais no Brasil, questão deveras menor,
pois apenas tergiversa o problema e não busca solucionar a constatação da
irrisória repressão e punição à prática de infrações penais.
Não obstante, apenas ad argumentandum, ainda
que o Ministério Público venha a ter permissão legal para investigar crimes, os
índices de criminalidade fatalmente permaneceriam sem grandes alterações, pois
representaria um número quase insignificante de investigações no universo de
crimes ocorridos diariamente em todo o país. Soma-se a isso, a ausência de
obrigatoriedade para que investigue, ficando a cargo do próprio membro do
Ministério Público decidir se quer ou não fazê-lo, selecionando os casos em que
gostaria de atuar, de modo que o encargo sempre recairá sobre as Polícias
Judiciárias, até mesmo por ser esta a sua finalidade, que age de ofício, sem
escolha, no dever apurar o desumano número de crimes praticados no Brasil.
De todo debate travado, foi
inegável a colaboração do Ministério Público no sentido de deixar
irrefutavelmente demonstrado que os fatores (i) garantias funcionais de seus
membros e (ii) prerrogativas institucionais de que são dotados são instrumentos
imprescindíveis também à Polícia Judiciária para o exercício da investigação
criminal.
Como muito bem demonstrado, a
Polícia Judiciária carece das mesmas autonomias financeira, administrativa e
funcional de que é dotado o Ministério Público, sem as quais fica à mercê das
contingências governamentais.
Com razão também quando
sustentam que os delegados de polícia não possuem independência funcional e as
garantias como vitaliciedade e inamovibilidade dos membros do Parquet, deixando
que aqueles se sujeitem a pressões e perseguições, situações das quais membros
do Ministério Público e da magistratura estão resguardados.
Isso mostra que um dos problemas da
investigação criminal no Brasil não está relacionado a quem investiga, mas à
existência dos meios necessários para que a Polícia Judiciária realize sua
principal função.
O outro problema é a política
da hiperostensividade policial, ou seja, o inchaço do policiamento ostensivo
como política na área de segurança pública, especialmente nos Estados, fundada
na ideia de que a saturação evitaria o cometimento de crimes e reduziria a
criminalidade.
A esse propósito, estudos têm demonstrado a
limitação desse modelo, pois a redução da criminalidade baseada
preponderantemente no policiamento ostensivo não gera efeitos concretos na
redução de forma efetiva e perene.
Essa constatação se baseia principalmente no
fato de que a presença da polícia ostensiva apenas evita a prática do crime
momentaneamente, pois resulta apenas no deslocamento da criminalidade, não
evitando que o crime seja praticado.
Por outro lado, um sistema de justiça criminal
forte e aparelhado, que começa na Polícia Judiciária e fecha o ciclo com o
julgamento pelo Poder Judiciário, é a melhor resposta para se reduzir o número
de crimes, pois apenas o criminoso preso ou que tenha a certeza de que o será
deixa de praticar novos delitos.
Não se pode dizer isso do delinquente solto,
que ao sentir que basta mudar de local para reiterar sua prática criminosa sem
repressão e sem punição ficará estimulado a delinquir impunemente.
Entretanto, a regra em muitos Estados ainda é
a existência de grandes efetivos de policiais ostensivos e reduzidos números de
policiais civis encarregados da investigação de crimes, gerando uma distorção
grave, pois a evidente omissão com relação à polícia investigativa tem
permitido que policiais que deveriam estar preservando a ordem pública,
ostensivamente, passem a agir de forma velada, fora de suas atribuições legais,
usurpando as funções da polícia judiciária, o que reforça a tese e as
conclusões de que a hiperostensividade policial em detrimento da policia
investigativa não coaduna com os problemas que reclamam solução.
Tudo isso nos faz concluir que a redução da
criminalidade depende essencialmente de investigação, de apuração dos crimes e
dos autores, para que sejam levados a julgamento pelo Poder Judiciário,
condição essencial para que sejam condenados.
Porém, na contramão da
relevante e indispensável função que exerce no contexto social e jurídico, a
Polícia Judiciária está em evidente declínio, à beira do colapso, gerando
severas críticas de alguns “especialistas” ao modelo de investigação criminal
existente no Brasil, conquanto esses mesmos críticos ainda não tenham sido
capazes de responder afirmativamente às simples perguntas:
Passados vinte e cinco anos desde a
promulgação da Constituição Cidadã, às polícias judiciárias foram dadas as
condições mínimas para que exercessem dignamente suas funções? O problema é o
modelo ou a absoluta falta de condições?
Evidente que não existe outra
resposta senão a de que o atual modelo de total dependência e absoluta
subordinação da Polícia Judiciária nunca permitiu a criação de um ambiente
minimamente propício para se evoluir e alcançar, como consequência, índices
satisfatórios de combate à alta criminalidade.
A realidade mostra que a
situação da Polícia Judiciária em vários Estados, salvo raras exceções, é de
abandono, havendo casos em que a Polícia Civil caminha para a extinção, ante a
quase absoluta falta de recursos materiais e humanos.
Talvez isso interesse a alguém, menos à
sociedade.
Diante disso, como reduzir a alta
criminalidade se a instituição responsável pelo procedimento de apuração
preliminar de condutas criminosas – e não são poucas as que cotidianamente são
praticadas – não conta com recursos e garantias funcionais mínimos para
consecução de suas finalidades institucionais?
A correção desses problemas só
acontecerá com disposição política e compromisso em se melhorar o Brasil,
promovendo as modificações legislativas necessárias, especialmente no âmbito do
Poder Legislativo Federal, a quem compete promover a alteração da Constituição
Federal e a edição das leis nacionais.
Para tanto, a primeira
providência é a apresentação de projeto de emenda constitucional para se
conferir às Polícias Judiciárias as autonomias funcional, administrativa e
financeira, ao mesmo tempo em que deve conferir à carreira de delegado de
polícia, membro da carreira jurídica de Estado, as mesmas garantias funcionais
de juízes e promotores.
Essas medidas são o reconhecimento de que a
Polícia Judiciária não existe para atender aos interesses de governos e
mandatários, porquanto, tal como a magistratura, exerce função
contramajoritária, subordinando-se exclusivamente ao império da lei e do
Direito, investigando “sem olhar na cara”.
Bom que se diga, embora pareça
óbvio, que a própria natureza e função exercida pela Polícia Judiciária a
vincula ao Poder Judiciário, que é o seu referencial e o destinatário do
procedimento inicial da persecução penal.
A despeito disso, a vinculação
ao Poder Judiciário não foi a opção adotada pelo constituinte originário que,
ao invés de dotá-la então de autonomia, optou pela mais inoportuna subordinação
da Polícia Judiciária ao Poder Executivo, geralmente sob o teratológico
controle do secretário ou ministro de Estado.
Fica evidente o equívoco desta
escolha política, pois, historicamente, a função de apurar os crimes já foi
tarefa de magistrados. Evidentemente, notou-se a inconveniência de um juiz
atuar na investigação e no julgamento do processo criminal, violando o modelo
processual penal acusatório, que no modelo do juízo de instrução impõe a
participação de dois magistrados, um na investigação e outro no processo penal
– modelo ainda adotado em alguns países.
No caso do Brasil, também em
razão da grande extensão territorial, optou-se por “delegar” a outro agente
público, dentro da própria instituição de polícia judiciária, com a mesma
formação jurídica do magistrado, a presidência da fase preliminar.
Isso é marcante em nossa
história, tanto que o art. 531 do atual Código de Processo Penal estabelecia
que o processo sumário das contravenções penais se iniciava pelo auto de prisão
em flagrante ou por portaria do delegado de polícia, dotando-o de verdadeiras
atribuições jurisdicionais, próprias do Poder Judiciário, mas que fora revogado
apenas em 2008 pela Lei. Nº 11.719.
Assim, percebe-se que adotamos
um modelo semelhante ao do juízo de instrução, porém sob a presidência de um
delegado de polícia, cujas algumas das funções é zelar pela legalidade dos atos
de investigação criminal e pela observância dos direitos do investigado,
exercendo, assim, atribuições semelhantes às exercidas pelas autoridades
judiciárias (magistrados) ainda hoje nos países que adotam o modelo de juízos
de instrução, ressalvadas obviamente as medidas sujeitas à reserva de
jurisdição.
Exemplo dessa proximidade
institucional é o fato de o delegado de polícia
– membro da carreira jurídica do Estado – ser a autoridade encarregada
da lavratura dos autos de prisão em flagrante, formando a sua própria opinio
delicti sobre os fatos no ato de indiciamento, com competência para conceder a
liberdade do preso e arbitrar fiança, podendo ainda determinar a apreensão e a
restituição de bens relacionados ao crime, situações em que atua, tal como o
juiz, com o poder de impor, com base na lei, restrições sobre bens e até mesmo
sobre o status libertatis do cidadão.
Está o delegado de polícia
incumbido do relevante dever de resguardar direitos, seja os da vítima, para
preservá-la de males ainda maiores do que os já suportados pelo crime, seja os
do infrator, para preservar sua integridade física e moral e lhe garantir o
exercício de seus direitos constitucionais, sendo chamado pela célebre frase do
eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, de “o primeiro
garantidor dos direitos do cidadão”.
Sem prejuízo de tudo isso,
ainda é atribuição da autoridade de polícia judiciária representar ao Poder
Judiciário pelas medidas cautelares necessárias à persecução penal.
Tudo isso demonstra a
importância da função da Polícia Judiciária e do delegado de polícia,
responsáveis pela depuração dos fatos na fase primeira da persecução penal, que
serve não só para revelar o crime e seu autor, mas também para evitar
imputações açodadas e desprovidas de fundamento.
É preciso reconhecer o valor
das funções essenciais e exclusivas de Estado exercidas pela Polícia
Judiciária, porquanto é a que tem – ou deveria ter – condições de efetivamente
reduzir os índices de criminalidade no Brasil.
Também por essas razões, não é
mais aconselhável a manutenção desse modelo de subordinação, possibilitando que
a Polícia Judiciária possa atuar de fato e de direito com independência,
isenção e imparcialidade, livres de influxos externos que maculam o interesse
público inerente às suas funções.
Pois, do contrário,
continuar-se-á a conviver com paradoxos como a constatação de que as
instituições encarregadas da persecução penal e da aplicação da lei penal –
Poder Judiciário e Ministério Público – gozam de autonomia e garantias
funcionais para seus membros, enquanto a Polícia Judiciária, encarregada das
investigações e descoberta dos mesmos fatos que serão submetidos ao crivo
daquelas instituições, não goza de qualquer garantia.
Soa contraditório também o fato
de que, dentre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado
(Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) que não defendem
interesse do próprio Estado, a Polícia Judiciária seja a única sem autonomia financeira, administrativa
e funcional.
Por essas e por outras razões é
que o pleno exercício das funções da autoridade de polícia judiciária (delegado
de polícia) impõe a existência das mesmas garantias funcionais dos membros da
magistratura e do Ministério Público, haja vista que todos eles exercem seus
relevantes deveres funcionais sobre parcela de todo o complexo procedimento de
persecução penal.
Diante de tudo isso, se a
Polícia Judiciária ainda hoje não conseguiu exercer satisfatoriamente sua
função é que, ao lado da ausência de autonomia administrativa, funcional e de
orçamento próprio, está ela dependente de políticas de governo, que investem
mais ou menos de acordo com as contingências governamentais – como se segurança
pública pudesse, de alguma forma, ser contingenciada, como se a preservação da
vida fosse algo postergável.
Por tudo isso, a solução da
alta criminalidade e da baixa efetividade na apuração de crimes e julgamento
pelo Poder Judiciário passa necessariamente pela autonomia da Polícia
Judiciária tanto funcional, administrativa como financeira, especialmente esta
última, e pela previsão de independência funcional e garantias aos delegados de
polícia para o exercício das funções de polícia judiciária.
Autor:
Thiago Costa - Delegado de Polícia
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