Desde o início de 2013, o Brasil
se reencontrou com as manifestações populares. Para constrangimento de
autoridades políticas, uma mescla de inconformismo e descrença vem ocupando as
ruas. Neste cenário, o que tem sido dramatizado é a violência, que ora emerge
como mecanismo de pressão por parte de manifestantes, ora como de repressão
pelas polícias.
A violência decorrente dos
protestos vem abalando a paz social. Por isso, a força policial tem sido acionada
para restaurar a ordem e garantir a lei. O resultado já é conhecido: confrontos
violentos entre manifestantes e policiais. Exemplos desse drama: em junho, o
fotógrafo Sérgio Silva perdeu um olho após levar um tiro de bala de borracha
disparado pela tropa da Polícia Militar de São Paulo; e em outubro, um coronel
dessa mesma polícia, Paulo Reynaldo Rossi, foi duramente espancado por
manifestantes.
No que toca as polícias, elas
não são meras coadjuvantes nas manifestações populares do Brasil e alhures. Ao
contrário, elas são personagens de relevo, porque as suas ações podem definir a
extensão da liberdade dos indivíduos. Tem-se que, a polícia é a face armada do
poder político, a qual governos mantêm não só para coibir o crime, mas também
para repressão política. Abordei essa temática numa pesquisa realizada na
Universidade de Brasília, na qual comparo uma polícia militar brasileira com
outra congênere da América Latina.*
Em linhas gerais, a história
brasileira é repleta de situações em que polícias foram mecanismos de opressão.
Em defesa da ordem pública, ao longo do século XX, diversas manifestações
populares foram criminalizadas e enquadradas como “caso de polícia”. Assim,
entre operários, opositores políticos, comunistas, estudantes, marginalizados,
muitos sentiram a força policial do Estado.
Essa força é representada com
destaque pelas polícias militares. No Brasil, polícias militarizadas surgiram
em meados do século XIX, como milícias de governos estaduais. Com uma formação
cada vez mais bélica, elas se estruturam no início do século XX.
Posteriormente, com o Estado Novo de Vargas e a ditadura militar pós-golpe de
1964, elas foram definitivamente alinhadas às doutrinas do Exército.
A militarização ocorreu
taciturnamente na trajetória das forças policiais ostensivas. Por isso, é
curioso que, em meio às manifestações de 2013, surja especificamente a demanda
da desmilitarização. Esse pleito, sem grandes teorizações, identifica o formato
militar das polícias à repressão. Assim, polícias militares, que são personagens
no contexto dos protestos, passam para condição de objeto das reivindicações.
As polícias militares
brasileiras atraem holofotes há tempos, porquanto são criticadas pelo uso
excessivo da força letal. A título de exemplo, entre os anos 2001 e 2011, um
total de 5.205 civis foram mortos por policiais militares paulistas em serviço.
Note-se, embora não haja consenso, a quantidade de mortes reconhecidamente
atribuídas aos aparelhos da ditadura militar (1964-1985) não ultrapassa a soma
de mil vítimas.
Os movimentos sociais,
portanto, não estão equivocados ao clamar pela desmilitarização das polícias
militares. Seja por herança de regimes ditatoriais ou por dados contemporâneos
de violência policial, o formato militarizado coloca em campos opostos polícia
e sociedade. De forma geral, isso denuncia: mesmo decorridas mais de duas
décadas de democracia no Brasil, a arquitetura autoritária das forças policiais
quase não mudou e tampouco práticas abusivas foram definitivamente extirpadas.
Não obstante, ainda há substancial aceite ao modelo policial militar.
Governos e elites policiais
brasileiros entendem que esse modelo é adequado para condução de organizações
policiais, as quais juntas somam mais de 700 mil integrantes. Pelo mesmo
motivo, o modelo é defendido para enfrentar a criminalidade, bem como para
lidar contra movimentos sociais, estudantis, grevistas.
A desmilitarização das polícias
é tema controverso, o qual desde os anos 1990 vem sendo discutido sem
resultados satisfatórios. É fato. Quase dois séculos de socialização, formação
e atuação militar não se apagam facilmente. Com efeito, é preciso conhecer a
gramática das polícias militarizadas e os motivos de sua aplicação para que se
possa decodificá-la. A partir daí tratar da desmilitarização.
As cenas de violência maculam
os atuais protestos, tanto que algumas demandas perdem legitimidade. Esse é o
caso da desmilitarização das polícias militares. Todavia, fica um recado das
ruas com acento acadêmico: a desmilitarização sinalizaria uma contundente
mudança de rumo nos sentidos de aprofundamento da democratização, da
modernização do Estado nos aparatos de segurança pública e da relação polícia e
sociedade.
Alexandre Pereira da Rocha - A Gramática das Polícias Militarizadas: estudo comparado entre a Polícia Militar do Estado de São Paulo - Brasil e Carabineros - Chile, em regimes políticos autoritários e democráticos. Tese de Doutorado. CEPPAC/UnB, 2013.
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