A unificação
das polícias não somente é viável, mas absolutamente indispensável. Esse é um
problema estrutural da república brasileira: cada instituição é autônoma em
relação às demais. E o fracasso disso é histórico. As polícias civis e
militares, por exemplo, atuam de forma isolada - em vez de concentrarem seus
recursos e seus esforços num mesmo objetivo -, diminuindo drasticamente sua
eficiência.
Em dezembro
de 1999, em São Paulo, foi lançada a proposta de emenda constitucional que
reestrutura as forças de segurança pública no país. Redigido por um grupo
formado por ouvidores de polícia dos Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo,
Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pará; juristas; membros dos movimentos de luta
pelos Direitos Humanos e autoridades eclesiásticas, além deste secretário, o
documento foi entregue pelo Cardeal Emérito de São Paulo, Dom Paulo Evaristo
Arns, para o Secretário Nacional de Segurança, José Osvaldo Vieira, representante
do Ministro da Justiça.
Dias depois,
o texto foi encaminhado aos presidentes do Congresso Nacional e da Câmara de
Deputados. A iniciativa abrange diversas finalidades, dentro do propósito
finalístico de alterar a estrutura policial dos Estados, criando
simultaneamente um novo e mais moderno modelo de persecução penal. O alicerce
desse novo modelo radica-se, sem dúvida alguma, no fim da dualidade na função
policial. Com efeito, a extinção das polícias civis e militares deve
proporcionar uma estrutura unificada, denominada de Polícia Estadual, com
vocação para o exercício integral das funções policiais.
Assim, essa
nova estrutura policial teria em seu interior um braço voltado às funções de
investigação, para a instrumentação da ação penal, e outro braço, uniformizado,
cumprindo a função de policiamento preventivo e ostensivo.
É importante
ressaltar que o propósito básico da alteração é a integração dinâmica das
funções policiais, hoje repartidas entre as polícias civis e militares. Sob
comando único, e com atuação integrada em cada unidade territorial, prevenção e
persecução reunidas, agiriam harmoniosamente para dar cabo do difícil mister de
controle da criminalidade.
Não se trata
de uma unificação pura e simples das duas polícias existentes, mas sim de um
novo modelo, com novos princípios e novas características.
A estrutura
será remodelada, de tal modo que se estabeleçam cinco graus hierárquicos, em
que o salário mais alto seja, no máximo, quatro vezes maior que o mais baixo.
Nesse sentido, a diminuição dos graus da carreira deve preservar o princípio
hierárquico, estabelecendo-se para tanto regime disciplinar próprio e
compatível com a natureza da função policial.
Seguindo
essa linha de raciocínio, a nova polícia, em sua composição, deve pautar-se
pela proteção da probidade administrativa e pelo zelo da moralidade no exercício
das funções, motivo pelo qual a migração dos quadros das polícias civis e
militares para a polícia Estadual deve ser feita mediante avaliação da vida
funcional e dos antecedentes criminais de cada um de seus membros, conforme
critérios a serem definidos em lei.
Os Tribunais
e Auditorias Militares Estaduais, como consequência dessa nova estrutura, serão
extintos, o que implicará que todos os policiais, quando acusados do
cometimento de algum crime, serão julgados pela Justiça Comum, segundo um
padrão uniforme de aplicação de sanções penais.
Por isso, a
proposta estabeleceu como traço diferenciador entre o sistema vigente e o que
se quer ver instalado, a supressão da inquisitorialidade, com o consequente
desaparecimento do inquérito policial.
Importante
salientar que essa vetusta figura do inquérito policial há muito tem recebido
críticas acerbas de todos os que comungam dos mesmos ideais por uma sociedade
mais justa, conjugando a diminuição da impunidade e o respeito aos direitos do
acusado.
A obtenção
dos dados elementares à instrução da ação penal será feita pela Polícia
Estadual, mediante registros de ocorrências, lavratura de autos de prisão em
flagrante, promoção de diligências investigativas através de relatórios
circunstanciados ou quando requisitados pelo Ministério Público ou pelo Poder
Judiciário.
A
arquitetura desse novo modelo foi baseada na fixação de um procedimento
monofásico e de caráter judicial. A existente diacronia será substituída por um
sistema sincrônico das instituições.
O Poder
Judiciário, como regulador, teria o juízo de suficiência das provas, podendo,
no decorrer de ação penal, determinar seu sobrestamento sempre que os elementos
de convicção revelarem – se insuficientes à imputação. Palmilhando esse
caminho, cremos cumpridos os objetivos que animaram a propositura.
Um órgão,
independente e autônomo, sem atrelamento a qualquer dos Poderes da República,
teria sob sua responsabilidade todos os instrumentos necessários à formação do
juízo de acusação. Sem qualquer contato com a arrecadação dos dados elementares
para a propositura da ação penal, vestir-se-ia de maiores poderes, como órgão
garantidor dos direitos do cidadão acusado, vez que ao julgador seria atribuído
o juízo de suficiência de provas para a acusação.
O Ministério
Público, como articulador, promoverá diligências investigatórias, diretamente
ou em concurso com a polícia, para reunião dos elementos necessários e
suficientes à propositura da ação penal pública.
Sob outro
aspecto, a função policial, como executor, não ficaria desmerecida, mas, sob a
formatação correta, alocada no seu devido lugar. Com a extinção do inquérito
policial, seria abolida a chamada polícia judiciária, dando lugar a um
organismo policial investido de funções de polícia administrativa, preventiva e
investigativa.
Reafirme-se que não se pretende a substituição do inquérito policial por outro procedimento, igualmente burocratizado e ineficiente, a cargo do Ministério Público. A coleta das provas necessárias à denúncia, embora submissa aos princípios da oficialidade e da busca da verdade real, seria feita de maneira informal, de tal modo que eventual futura condenação só poderia estar alicerçada nas provas produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório.
Reafirme-se que não se pretende a substituição do inquérito policial por outro procedimento, igualmente burocratizado e ineficiente, a cargo do Ministério Público. A coleta das provas necessárias à denúncia, embora submissa aos princípios da oficialidade e da busca da verdade real, seria feita de maneira informal, de tal modo que eventual futura condenação só poderia estar alicerçada nas provas produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório.
A presente
iniciativa, na coerência da arquitetura do novo sistema, pretende a unificação
das polícias estaduais. Polícia Civil e Polícia Militar deixariam de existir,
dando lugar à assim chamada Polícia Estadual. Esta, similarmente à Federal,
estaria organizada segundo estatuto próprio, em que a disciplina e a hierarquia
estariam respeitadas. Porém, uma significativa diminuição dos graus da carreira
garantiria uma maior proximidade entre a base e a cúpula da Polícia, permitindo
a integração de funções e a unificação de comando.
A atividade
policial, já adequada à sua finalidade ontológica, continuaria sob o controle
externo do Ministério Público e sob a fiscalização das ouvidorias de polícia,
que se incumbiriam ainda de investigar eventuais infrações de policiais e de
promover auditorias quanto ao funcionamento do organismo policial, o que
possibilitaria maior transparência nesse setor da Administração Pública.
Os
departamentos de trânsito não estariam mais a cargo da polícia, mas sim da
Secretaria Estadual encarregada da área de transportes. De igual modo, o Corpo
de Bombeiros passaria à condição de órgão da Defesa Civil, atribuindo-se à
Polícia Estadual só as funções que lhe são típicas.
As
peculiaridades da atividade policial indicam a necessidade de um regime
jurídico diferenciado. Por isso, a cogitação de aposentadoria compulsória aos
30 anos de serviço e o período de dez anos para obtenção de estabilidade no
serviço, requer um estatuto disciplinar próprio, zelando pela hierarquia e pela
disciplina necessárias à eficiência dos serviços de segurança.
Não escapou
de nossas preocupações a irregular situação dos detentos das cadeias públicas,
em especial aqueles que permanecem alojados inadequadamente nas Delegacias de
Polícia. Há muitos anos são formuladas reclamações e divulgado o inconformismo
de diversos segmentos sociais com essa situação de descalabro no encarceramento
de detentos provisórios e reeducados em Distritos Policiais.
Em face
dessas circunstâncias, fixou-se um prazo para a apresentação de um cronograma a
ser rigorosamente cumprido de realocação dos detentos no sistema penitenciário,
sob pena de os Governadores de Estado e do Distrito Federal incorrerem em crime
de responsabilidade. Esse novo modelo de polícia não se situa no vácuo, mas
dentro de um novo sistema de persecução penal.
A evolução
social que o país vem apresentando nos últimos anos, sobretudo após a
reinstalação do sistema democrático que, privilegiando a liberdade de
informação jornalística, possibilitou que viesse ao conhecimento público a
existência de extensas cadeias criminosas, dotadas de organização e, não raro,
com conexões no poder público, quando não nas próprias instituições policiais
encarregadas da investigação criminal.
Sem
menoscabo dos relevantes serviços prestados pelos corpos policiais existentes,
o fato é que o quadro criminológico emergente do atual estágio de
desenvolvimento das relações sociais reclama, igualmente, evolução. Esse, na
verdade, o ponto básico que animou a elaboração dos dispositivos encartados no
presente projeto de emenda constitucional.
Nesse
sentido, essa evolução, que entendemos materializada nas modificações
sugeridas, foi fixada em dois pressupostos básicos: a eficiência na persecução
penal - sobretudo em relação aos chamados crimes de colarinho branco - e o
respeito aos direitos humanos.
De igual modo, a experiência internacional, embora com grande variação de conteúdo, revelou que o modelo bifásico de procedimentos não só se peculiariza pela ineficiência na sua finalidade persecutória, como também vem marcado por desrespeitos constantes aos direitos inalienáveis da pessoa.
A aparente ousadia da reforma proposta se desvanece quando verificado que a maior parte dos países do mundo, embora sem uma comunhão absoluta de objetos, adotou sistema análogo, caracterizado pela inexistência de inquérito policial e pela existência de um único organismo policial, constitutivamente plural por especializações e elastização horizontal da autoridade e da responsabilidade.
De igual modo, a experiência internacional, embora com grande variação de conteúdo, revelou que o modelo bifásico de procedimentos não só se peculiariza pela ineficiência na sua finalidade persecutória, como também vem marcado por desrespeitos constantes aos direitos inalienáveis da pessoa.
A aparente ousadia da reforma proposta se desvanece quando verificado que a maior parte dos países do mundo, embora sem uma comunhão absoluta de objetos, adotou sistema análogo, caracterizado pela inexistência de inquérito policial e pela existência de um único organismo policial, constitutivamente plural por especializações e elastização horizontal da autoridade e da responsabilidade.
Inquestionável
que a concretização das modificações ora sugeridas implicaria superlativo ganho
de eficiência. Cada instituição teria sob sua responsabilidade as funções que
naturalmente lhe pertencem. Ganharia a sociedade, com um sistema persecutório
mais eficaz. Ganharia o cidadão, com a adoção de mecanismos onde atrocidades,
como a tortura, dificilmente teriam lugar. Por fim, também ganharia o cidadão
acusado, com o fim do “indiciamento” e da própria inquisitorialidade. Quando
formalizada uma acusação, já haveria simultaneamente um juízo de garantia por
parte do Poder Judiciário.
Como se vê,
as medidas alvitradas florescem de um forte consenso social, que alia a busca
da eficiência - contraponto da impunidade - a um estado de respeito efetivo aos
direitos humanos, os quais, diga-se, comumente violados justamente pelos mesmos
que se aproveitam da ineficiência do sistema penal em relação aos “crimes de
colarinho branco” e os riscos da distribuição puramente vertical da autoridade.
Em última
análise, a iniciativa tem por objetivo a criação de um Novo Modelo de Polícia
intrinsecamente subordinada ao Poder Civil, pautada na eficiência e defesa da
legalidade democrática, que atenderá aos efusivos clamores da sociedade
brasileira que, entendemos, tem manifestado de diversas formas, reiteradamente,
a necessidade de ruptura do atual modelo de Polícia, inspirado no Controle
Social.
Principais
Pontos
- Fim da dualidade na função policial: extinguem-se as polícias civis e militares dos Estados e
cria-se uma Polícia Única Estadual, estabelecendo-se um corpo de
investigação e outro uniformizado preventivo-ostensivo, com previsão de
dois anos para a adequação;
- Extinção dos Tribunais e Auditorias Militares
Estaduais: todos os policiais, quando julgados,
serão submetidos à Justiça Comum dos Estados;
- Extinção da fase inquisitorial do procedimento
penal: fim do inquérito policial;
- Nova estrutura: a Polícia Única Estadual terá cinco graus hierárquicos;
- Piso e teto salariais: será instituído um padrão nacional de salários, sendo que a
diferença entre o menor e o maior não seja superior a quatro vezes;
- Controle externo: as Ouvidorias de Polícia, órgãos autônomos e independentes,
sem vínculo de subordinação com a Polícia, também farão o controle externo
da atividade policial;
- Médicos legistas e peritos criminalísticos: todas as carreiras técnico-científicas deixarão de fazer
parte da carreira policial, transferindo-se para o corpo funcional do
Judiciário;
- Corpo de Bombeiros: passarão a integrar o corpo funcional da Defesa Civil dos
Estados;
- Detrans: deixarão
a área de segurança para integrar a estrutura das Secretarias de
Transportes dos Estados, ou órgãos afins;
- Presos: a
Polícia não será responsável por presos condenados ou provisórios;
- Tempo de serviço: o período máximo para a carreira policial será de 30 anos;
- Efetivo: os
quadros das Polícias Estaduais serão compostos pelos integrantes das
polícias civil e militar, que passarão por avaliação de idoneidade e
antecedentes.
Por: JOSÉ PAULO BISOL é desembargador aposentado, jornalista, ex-senador e secretário da Justiça e da Segurança do Estado do Rio Grande do Sul
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